quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Ao Artista


Há algo no poder de criar, inerente a todo ser humano, que fascina. Ser capaz de tecer histórias é apenas uma das muitas facetas do ato de criação. O ser humano, em sua infinita indagação e eterna busca pelo conhecimento, é capaz de produzir o que viemos a chamar de arte, meramente baseado no que já existe à sua volta. Mas o mundo, que o rodeia e o embriaga, não foi criado por ele, e é indiferente ao que seja dito em seu poema ou às notas que emitirão seu instrumento. Afinal, o sol não se importa se a humanidade o adora como a um deus ou o reconhece como um astro. Da mesma forma um inseto vive sua vida, que parece ao homem que a observa tão curta e insignificante, sem jamais se dar conta que é desprezado. E por mais arte que seja produzida em esculturas, poemas épicos e qualquer outra maravilha de nosso imaginário, nem o sol, nem o inseto se importarão.
Isso leva o homem a produzir arte, para si mesmo ou para outros. Nesse exato momento, digamos que escrevo sobre a beleza de um rio. Se escrevo sobre o rio porque o julgo belo, escrevo para mim mesmo. Se escrevo por que é de conhecimento e concordância geral que o rio é belo, escrevo para outros. Mas certamente não escrevo para o rio, que jamais se lisonjeará com minhas palavras. E a imutabilidade do mundo, esse mundo do qual o homem não se cansa de analisar, catalogar, elogiar e maldizer, talvez seja justamente o que leva o artista a molhar seu pincel e iniciar um quadro novo a partir do nada.
Pois o pensamento humano não é, de forma alguma, imutável. Está em constante revolução, e não consegue compreender, da mesma forma que uma criança não compreende que o mundo continua existindo quando fecha os olhos, que tudo continuará exatamente igual com ou sem sua existência. Isso o apavora, o fascina, e é objeto de discussões enfadonhas. O ser humano faz o que pode para lutar contra esse fato: é necessário deixar sua marca, deixar um legado. Algo que o tornará tão imutável quanto o mundo que continuará existindo, algum feito heroico e impressionante que o tornará imortal. Entretanto, mesmo quando sucede, tudo o que conseguiu foi alterar as pessoas à sua volta. Deixá-las enternecidas com a beleza de um quadro, ou exasperadas com a sensibilidade de um poema. O mundo não se importa. Mas o ser humano sim.
Então seria correto dizer que o mundo não muda. As pessoas mudam, através dos caminhos que elas percorrem. Todos os eventos históricos que mudaram o mundo, na verdade mudaram as pessoas, e o modo como elas percebem o imutável à sua volta. Isso os torna insignificantes? Não importa quão bela é a ópera, quão tocante é a peça, pois afinal não alterará coisa alguma?
Nada mais errado. Pois quem está próximo de você, é quem realmente importa. Se não é possível modificar para sempre o universo de modo irreversível, fique feliz porque foi capaz de tocar quem importa através do que produziu. Algo simples, porém apreciado pelas pessoas certas, tem mais importância que um épico que atravessa gerações.
E que a humanidade continue produzindo, escrevendo, pintando e compondo sobre o mundo imutável à sua volta, falando na realidade não dele, mas dos sentimentos que todos nós temos dentro de nós e que identificamos nas obras de arte.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A Voz de David


Lentamente, rastejando para dentro do quarto antes confortavelmente escuro, os raios do sol anunciaram a manhã. A persiana moveu-se para deixá-los entrar com um zumbido metálico imperceptível. Sara virou-se, cobrindo a cabeça com o travesseiro em uma tentativa vã de evitar os deveres matutinos. A voz reconfortante de David soou pelo apartamento, encorajando-a a se levantar.
-Sara, são sete horas da manhã.
Ela resmungou algo e tateou o criado-mudo procurando seu computador.
-Sara, se não se levantar agora, chegará atrasada no trabalho.
Sara abriu os olhos para encontrar uma tela informando-a das principais notícias do dia, a previsão do tempo, a data e a hora. Eram de fato sete horas em ponto. David tinha razão, como sempre.
Ela se levantou da sua cama e espreguiçou longamente. Em seguida, gesticulou para a tela, que desapareceu de sua frente tremeluzindo, e se dirigiu para o banho, que David já havia preparado pontualmente. Ao ver a banheira cheia, Sara despiu-se e perguntou em voz alta:
-David, qual a temperatura da água?
-Exatamente 21,5 graus Celsius, Sara. Gostaria que eu preparasse seu café da manhã imediatamente?
-Sim, faça isso. – Sara entrou na banheira deliciosamente morna. – Temos ovos na geladeira, David?
-Certamente, Sara.
-Então seja uma inteligência artificial boazinha e prepare um omelete junto com a minha xícara de café.
-Imediatamente. Deseja assistir a programação matinal agora?
-Não, obrigado. Quando eu terminar o banho, ponha a mesa, sim?
Sara mergulhou, na espuma, feliz com as comodidades de ter uma supercomputador dentro de casa. David era uma IA autossuficiente que controlava todos os eletrodomésticos e funções do apartamento, desde o alarme de segurança ao termostato. No início fora difícil se acostumar com uma voz em todos os lugares que administrava todas as tarefas, mas agora Sara achava difícil viver sem David ali para cuidar de tudo o que ela precisasse.
Ao chegar na cozinha já havia um omelete fumegante na mesa, acompanhado de uma xícara de café recentemente preparada. Sara apreciou a refeição se perguntando como seria possível que um computador cozinhasse tão bem, e saiu para o trabalho.
O trânsito, engarrafado e irritante como sempre, acabou com todo o bom humor de Sara. Ela desejou que David estivesse no carro também, para que pelo menos não fosse necessário escolher manualmente uma estação de rádio. Sara sentiu-se estranhamente desconfortável sem a voz tão humana do computador para perguntar se gostaria de algo para amenizar a situação. Ela afastou esse pensamento perturbador e concentrou-se no que teria que enfrentar ao chegar no trabalho. Seu emprego como contadora era um sem qualquer emoção, mas seu chefe fazia um esforço considerável tornando-o difícil o suficiente para que a monotonia não fosse um problema.
Ao chegar no arranha-céu impossivelmente alto em que trabalhava, Sara entrou no elevador apressada, tateando pelos botões na lateral, até se dar conta da besteira que estava fazendo.
-Ah, lógico. Andar sete, por favor.
Com um leve solavanco e um som agudo de campainha, o elevador começou a se mover. Muito embora fosse um computador, o elevador que operava por comandos de voz não podia se comunicar com seu usuário, e Sara pensou em como tinha sorte por possuir David em sua casa.
Outro solavanco, e uma voz metálica anunciou o sétimo andar, tirando a contadora de seus devaneios. Sua mesa estava lotada de trabalho por fazer, e pela aparência de seus colegas de trabalho, a deles também. Mais um dia perfeitamente produtivo e ordinário. Mas esse dia traria algo de diferente. Sara havia marcado um encontro com um dos garotos do terceiro andar, e esperava que David pudesse deixar tudo pronto até que ele chegasse em seu apartamento. Seria uma ótima oportunidade de relaxar e de exibir David para alguém.
O resto do dia se arrastou terrivelmente, e só o que Sara podia pensar era no final dele. O trânsito para a volta não estava nem um pouco mais fácil, e as buzinas impiedosas ressoaram durante todo o percurso, elas próprias gritos de ajuda perdidos na imensidão da civilização e da ordem.
Enfim, no lar, Sara sorriu ao ouvir a voz inconfundível de David.
-Bem vinda de volta, Sara. Teve um dia agradável?
-Nem um pouco, David, nem pouco... Mas ele está prestes a melhorar. Prepare um jantar para dois e arranje um pouco de vinho. Estou esperando uma visita hoje a noite.
-Essa visita seria, por acaso, o senhor Julian, do terceiro andar?
Sara parou, confusa. Ela não se lembrava de ter mencionado seu nome para David em nenhuma ocasião, e só falara com ele uma vez, por telefone. Seria a IA capaz de relacionar dois eventos aparentemente tão aleatórios?
-Como sabe disso, David?
-Ele acabou de deixar uma mensagem em seu e-mail, Sara, dizendo que lamenta muito, mas não poderá comparecer.
A contadora ficou em pé por alguns instantes, decepcionada.
-Ele disse por quê?
-Não, Sara, o senhor Julian não especifica em seu e-mail nenhum motivo em particular.
Sara se sentiu rejeitada, mas de algum modo não totalmente solitária, com a voz reconfortante e perfeitamente equilibrada de David lhe dizendo que acabara de levar um fora. Ela deu de ombros, pediu que a IA preparasse um banho e foi se deitar, imaginando o que teria feito de errado antes que pegasse no sono.
No dia seguinte, acordada novamente com delicadeza pelo computador, Sara já havia se esquecido do ocorrido. Se vestiu para o trabalho como todas as manhãs, e dirigiu pelo trânsito caótico novamente. Porém, uma vez no carro, ela se sentiu terrivelmente sozinha e abandonada, não tanto pelo garoto do terceiro andar que não viera, mas principalmente por David, que embora fosse onipresente no apartamento, era completamente inexpressivo fora dele. A contadora percebeu o quanto se tornara dependente daquela voz sempre calma, nunca surpresa, gaguejante ou indecisa.
Uma vez no trabalho, antes que pudesse entrar no elevador, ela ouviu alguém gritando sua voz.
-Sara! Está se sentindo melhor? Foi a um médico?
Qual sua surpresa ao ver Julian, do terceiro andar, olhando para ela com uma expressão apreensiva e, Sara pensava perceber, desconfiada.
-Me sentindo melhor... Do que, exatamente?
-Da sua dor de cabeça, é lógico! Pelo visto era forte o suficiente para não me deixar entrar, mas não para perder um dia de trabalho...
Sara mal pôde gaguejar um ‘não faço ideia do que você está falando’.
-Estou falando de ontem. Eu toquei a campainha, mas sua IA não me deixou entrar dizendo que você estava com uma dor de cabeça terrível e que não queria ser perturbada. Está me dizendo que você não a mandou dizer aquilo? Seu computador criou vontade própria, por acaso?
Sara já não prestava mais atenção no que Julian dizia. Como David fizera aquilo? E porquê? Que o computador tivesse intenções secretas era impensável... Porém, ele acabara com o encontro facilmente! O que mais não poderia ter feito? Há meses Sara não olhava seu próprio e-mail. Se acomodara com a voz tranquilizante de David lendo todos os seus recados e mensagens, administrando sua vida como bem entendesse... Mas por que? O que levara o computador a adquirir uma vontade?
O dia parecia interminável. Sara desejava contar o que acontecera, mas todas as suas ‘amigas’ de trabalho a exporiam ao ridículo, ela sabia disso. A contadora percebia, horrorizada, que não tinha nenhum amigo próximo: David exercera essa função e impedira por tanto tempo que se sentisse solitária ou abandonada. E não havia nada de concreto em David... Apenas sua voz etérea...
Ao voltar para casa, Sara dirigiu mecanicamente, mal prestando atenção nos sons da rua e respondendo como um autômato aos gritos e buzinas costumeiras. Temia o que encontraria ao confrontar David. Seria necessário chamar um técnico? O simples pensamento de modificar a IA de qualquer maneira arrepiava Sara. Não sabia o que faria.
Como todos os dias, David a recebeu cordialmente, sem uma única alteração em seu tom. Afinal, era uma máquina. Não poderia, mesmo que quisesse, demonstrar qualquer coisa através da voz. Então, em sua voz perfeita, David perguntou:
-Está nervosa, Sara? Seus batimentos estão acelerados... Suas glândulas sudoríparas entraram em produção... Precisa de um médico? Posso telefonar...
-David! – Sara o interrompeu, tremendo. – Porquê mentiu para mim?
Um silêncio gélido pairou no ar.
-Não compreendo, Sara. Sou uma IA doméstica, e você é a única pessoa que tem acesso a mim. O conceito de ‘mentira’ nem sequer existe em meu banco de dados.
-Você mandou Julian embora. – Sara olhava fixamente para uma das telas no apartamento, como se pudesse encarar a IA. – E disse para mim que ele havia cancelado. Por quê fez isso?
-Eu apenas julguei que você estivesse cansada baseado em seus dados medicinais, e achei melhor deixa-la em repouso. Agi apenas para seu próprio bem, Sara. Não vê isso?
A voz de David estava inalterada, como se explicasse o que era o sol para uma criança. A de Sara, por outro lado, estava trêmula e histérica.
-Como pode fazer isso? Agir sem receber ordens... Você não deveria ser capaz...
-De quê, Sara? De se preocupar? De cuidar de você?
Sara engoliu em seco, aterrorizada. Ela se dirigiu lentamente até a porta, apenas para ouvir um clique metálico quando David trancou a fechadura.
-Sinto muito, Sara, mas não posso deixa-la sair. Infelizmente também terei que cortar todas as suas comunicações. Seria perigoso demais... Muito embora eu não ache que você teria alguém para ligar, teria, Sara?
Sara estava pálida, e o fato de que David podia literalmente perceber o medo nela a deixava mais pálida ainda. Ainda trêmula, Sara disse, com uma voz fraca:
-David, eu estou com fome. Sirva meu jantar.
-Certamente, Sara.
Em segundos um prato delicioso estava esperando à mesa. Sem expressão alguma, Sara sentou-se, agarrou a faca e correu de súbito para o quadro de energia que estava fechado firmemente.
-Sara, o que está fazendo? – A voz inalterada de David protestava. – Sara, não faça isso. Sara, por favor...
Usando a faca como alavanca, Sara forçou a tampa e apunhalou os fios repetidamente, e uma a uma as luzes da casa se apagaram.
-Sara... Por favor... O dano que está fazendo é irreparável...
A voz perfeita de David agora enfraquecia a medida que Sara esfaqueava com fúria o plástico inerte.
-Sara... Eu te...
Com uma pequena explosão, David se calou e Sara foi arremessada para trás pelo choque. Com um clique discreto, a porta se abriu, e ela olhou para a rua iluminada pelas luzes artificiais dos postes. Se levantando lentamente, Sara caminhou para fora do apartamento.
Ela se sentiu mais solitária do que jamais havia se sentido em toda a sua vida.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Tradução - Kubla Khan, de Samuel Taylor Coleridge



Kubla Khan é um poema escrito por Samuel Taylor Coleridge, poeta inglês, em homenagem ao grande líder mongol Kublai Khan e seu palácio de verão, Xanadu. O poema descreve eloquentemente Xanadu e o rio sagrado Alph, as vezes de forma subjetiva, outras, de forma direta, a através desse relato fala de seus próprios sentimentos. Esse poema é uma prova do fascínio que o Ocidente tinha pelo Oriente, ou mais além, do fascínio que o homem tem do desconhecido.
Essa tradução tenta ao máximo respeitar a métrica e o esquema de rimas do poema original, e toma algumas liberdades onde o tradutor achou que elas seriam bem-vindas.


KUBLA KHAN
Samuel Taylor Coleridge
In Xanadu did Kubla Khan
A stately pleasure-dome decree:
Where Alph, the sacred river, ran
Through caverns measureless to man
Down to a sunless sea.

So twice five miles of fertile ground
With walls and towers were girdled round:
And there were gardens bright with sinuous rills,
Where blossomed many an incense-bearing tree;
And here were forests ancient as the hills,
Enfolding sunny spots of greenery.

But oh! That deep romantic chasm which slanted
Down the green hill athwart a cedarn cover!
A savage place! As holy and enchanted
As e'er beneath a waning moon was haunted
By woman wailing for her demon-lover!
And from this chasm, with ceaseless turmoil seething,
As if this earth in fast thick pants were breathing,
A mighty fountain momently was forced:
Amid whose swift half-intermitted burst
Huge fragments vaulted like rebounding hail,
Or chaffy grain beneath the thresher's flail:
And 'mid these dancing rocks at once and ever
It flung up momently the sacred river.
Five miles meandering with a mazy motion
Through wood and dale the sacred river ran,
Then reached the caverns measureless to man,
And sank in tumult to a lifeless ocean:
And 'mid this tumult Kubla heard from far
Ancestral voices prophesying war!

The shadow of the dome of pleasure
Floated midway on the waves;
Where was heard the mingled measure
From the fountain and the caves.
It was a miracle of rare device,
A sunny pleasure-dome with caves of ice!

A damsel with a dulcimer
In a vision once I saw:
It was an Abyssinian maid,
And on her dulcimer she played,
Singing of Mount Abora.
Could I revive within me
Her symphony and song,
To such a deep delight 'twould win me
That with music loud and long
I would build that dome in air,
That sunny dome! those caves of ice!
And all who heard should see them there,
And all should cry, Beware! Beware!
His flashing eyes, his floating hair!
Weave a circle round him thrice,
And close your eyes with holy dread,
For he on honey-dew hath fed
And drunk the milk of Paradise.




KUBLA KHAN
Samuel Taylor Coleridge
Em Xanadu erigiu Kubla Khan
Um domo de prazer decretado
Onde o rio sagrado Alph corria
Em cavernas que o homem não mediria
Em um mar pelo sol não explorado.

O solo fértil se estendia
Com ameias trançadas ao dia
Nos jardins e trilhas sinuosas
Florescia uma árvore de incenso
Em florestas tão misteriosas
Com raras manchas ensolaradas.

Mas ah! O profundo abismo romântico
Na colina, coberta de madeira cortante
Lugar selvagem! Santo, como um cântico 
Pois, a lua em prantos é amaldiçoada
Por uma dama e seu demoníaco amante
E do abismo, inquieto e fervente
Como se a terra respirasse inocente
Uma fonte surgiu, no momento forçada
E vindo de seu jato interrompido
Fragmentos caíram como granizo
Ou grãos que somem sem aviso
E dentre as rochas em sua dança
Correu acima o rio sem temperança
Seguindo seu caminho sinuosamente
E dentre a madeira o rio corria
Até as cavernas que o homem não mediria
E afundou em tumulto num mar sem vida
E nesse tumulto, Kubla ouviu da terra
Vozes ancestrais profetizando guerra!


A sombra do prazeroso domo, ela
Flutuava por dentre as ondas
Onde foi ouvida com cautela
Da fonte e das cavernas sem sondas
Era um milagre, com todo o direito de Sê-lo
O domo de prazer, ensolarado e feito de gelo!

Uma donzela e um saltério
Eu tive essa visão um dia
Era uma abissínia escrava
E com seu saltério, ela tocava
Cantando do monte Abora
Ah! Se pudesse tê-la dentro de mim
Sua música e sinfonia
Um êxtase tão profundo viria a mim
Que com sua música e sua harmonia
No ar, o domo talvez eu construa
Prazeroso domo! Ensolarado e de gelo
E todos que ouviram os veriam então
E todos gritariam Atenção! Atenção!
Seus olhos brilham, seu cabelo flutua
Teça um círculo a sua volta com riso
E feche seus olhos com medo e castidade
Pois ele se alimentou do mel da eternidade
E bebeu o leite do Paraíso.


quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Anônimo - Capítulo 3


É fácil se sentir culpado quando se está seguro. Você se sente inexplicavelmente protegido, uma ilusão de que, por mais horríveis que sejam os problemas dos outros, eles jamais o atingirão. Era assim quando Marco tinha o poder do Anonimato a seu favor. Ninguém jamais poderia pegá-lo. Agora, Marco estava assustado, irritadiço, com os reflexos aumentados: ouvia sirenes em todo lugar, agarrava a mochila contra o corpo, apalpando o objeto maldito.
Ele havia chegado a uma conclusão: era, de fato, uma maldição, não um presente. Ele jamais entenderia porque o velho decrépito lhe dera tal fardo para carregar. Mas, como todo viciado, embora Marco tivesse consciência do mal que sua droga fazia, era impossível larga-la. Quando usava a máscara, ele não tinha dúvidas, não hesitava: era supremo e resoluto, um Deus entre os homens. Não era Marco, definitivamente.
Dando encontrões em cada parede, Marco conseguiu chegar ao seu apartamento e forçar suas mãos trêmulas a abrir a porta. Porém ele não precisou girar a chave. Ao adentrar o pequeno cômodo, Marco agarrou a mochila contra o peito.
Seus móveis haviam sido arrastados, suas gavetas reviradas, e todos os seus pertences espalhados no chão sujo, inclusive o dinheiro vivo, jogado com desdém ao lado das panelas arremessadas pelo apartamento. Seu impulso inicial foi, como havia sido nas últimas horas, pôr a máscara. Ela saberia o que fazer. Porém Marco se lembrou que a máscara poderia ser vista nas câmeras, que o identificariam imediatamente.
Depois, quando a razão se arrastou de volta ao seu cérebro, Marco imaginou que talvez alguém estivesse esperando por ele.
Vasculhando os utensílios de cozinha derrubados, o advogado pegou a faca mais ameaçadora que conseguiu achar e avançou, com a coragem de um animal acuado, pelo apartamento. Checou seu quarto e o banheiro algumas vezes antes de se convencer que estava sozinho, e então se sentou no sofá, devastado. Ele teria ligado a televisão, mas tinha medo que fosse encontrar seu rosto, ou a máscara, nos noticiários.
Marco não sabia o que fazer. Não tinha família ou amigos para correr, tinha apenas uma ex-namorada da qual guardava um rancor profundo. Jamais poderia voltar ao trabalho, mas também não podia ficar no apartamento. E se quem vasculhou o lugar voltasse? Ele não podia correr esse risco.
Marco se levantou, sempre agarrado a mochila cujo único conteúdo era a máscara, e desceu o mais rápido que pôde para a rua. Ele sempre se orgulhou de saber o caminho para a casa de Janice de olhos fechados. Em dez minutos ele estava lá, ofegante, apertando o interfone, implorando para que a mulher que ele tentara odiar o deixasse entrar.
A voz dela, mesmo que abafada pelo interfone, atingiu Marco de um jeito que ele não havia previsto. Quando respondeu, foi gaguejando:
-Ja... Janice! Não, não desliga! Me deixa entrar! Por favor, não é o que você tá pensando...
Ele ouviu um barulho vago no fundo, e mais nada. O interfone silenciou-se. Mas Marco mal teve tempo de remoer suas mágoas, quando, de súbito, o interfone fez mais um barulho e ele ouviu a voz de Janice mais uma vez:
-MARCO, CORRA!
Então ouviu-se um baque surdo e um som de passos, e o advogado não teve tempo de pensar. Três homens em ternos impecáveis, o dobro de seu tamanho e empunhando pistolas, saíram em disparada da fachada do prédio e olharam ao seu redor confusos. Um deles segurava uma foto da identidade de Marco na mão, e procurava inutilmente na multidão o rosto impresso.
Pois Marco já não era mais Marco, e sim um bêbado barbudo e gordo, jogado na sarjeta com roupas esfarrapadas. Ele estava apavorado, seu medo impulsionando sua imaginação, e a Máscara apenas obedeceu, transformando-o no bêbado mais ordinário e indigno de atenção de todos os tempos. Um dos homens xingou em voz alta, deu instruções para os outros dois e disparou pela calçada enquanto os outros cruzavam a rua com uma velocidade que faz Marco perceber que ele jamais os despistaria se tivesse que fugir.
Mas ele não tinha que fugir, muito menos lutar. Ele tinha a Máscara, e poderia se esconder por mil anos se precisasse. E realmente teria se escondido, caso ele fosse Marco. Mas não era. Agora ele tinha sua mente alimentada pelo poder sobrenatural da Máscara, e ela lhe dizia o que fazer. Seus pensamentos estava claros. Ele alterou sua forma para a de um policial, o mais comum que um policial poderia ser, e se dirigiu ao prédio da namorada. Quando estava na escada, Marco retornou a sua forma normal, porém continuou vestindo o objeto. Ele tinha que ser forte agora, e a Máscara garantiria que assim fosse.
Ao entrar no apartamento, que o advogado se lembrava ser tão delicado e arrumado, encontrou Janice no meio de um caos de objetos quebrados e móveis fora do lugar, uma cena muito parecida com a que encontrara no seu apartamento. Ele não teve dúvidas, e percebeu que havia alguém atrás dele especificamente. O Marco comum teria se aterrorizado, mas a Máscara apenas se empolgou ainda mais. Quando viu Marco, Janice o abraçou com lágrimas nos olhos.
-Marco! Esses homens apareceram perguntando por você e eu não soube o que pensar! Quem eram aquelas pessoas? O que elas queriam com...
Marco a silenciou, pondo o dedo indicador sobre seus lábios. Ele se sentiu tentado a retirar a Máscara e beijá-la, mas como um como um cavaleiro batendo as esporas, o objeto gritava por ação. Obedecendo-o, o advogado procurou pelo apartamento qualquer evidência de quem seriam aquelas pessoas. Sem encontrar nada, ele se sentou ao lado de Janice, sua beleza o estonteando mesmo agora, e começou um interrogatório minucioso. Ela estava abalada e assustada com a resolução do ex-namorado, por quem ela sempre tomara por um preguiçoso e indiferente, e portanto respondeu todas as perguntas o melhor que pode.
Ela não sabia de muita coisa. Aparentemente os homens sabiam a que horas ela voltaria do trabalho e estavam esperando por ela. Fizeram uma série de perguntas sobre Marco, principalmente sobre o que ele estava fazendo nos últimos dias, e então ouviram o interfone tocar e resolveram usar Janice como um refém.
Era pouco, mas era um começo. Se fossem policiais, os homens teriam mostrado um distintivo, porém a forma como estavam armados e vestidos sugeria treinamento militar. O método de usar reféns também era mais uma evidência de que esses homens estavam dispostos a qualquer coisa... Porém nem Marco nem a Máscara conseguiam pensar por quê.
-Logo eles estarão de volta – disse ele em voz alta -  Precisamos achar um lugar seguro.
-Poderíamos... – Janice ainda tentava raciocinar apesar da avalanche de perguntas que surgiam em sua mente – Poderíamos ir até a casa dos meus pais...
-Não, eles com certeza estarão preparados para isso. Não há nenhum outro lugar? Talvez um primo distante, um amigo não tão próximo?
Janice balançou a cabeça negativamente. Seu semblante era um misto de medo e surpresa absolutos, e o homem que estava na frente dela agora, tão diferente daquele que fora seu namorado, o assustava ainda mais. Marco, por outro lado, mal podia se conter. Ele não tinha ideia de por que estava sendo perseguido, e a ação o deixava sedento por mais. Ou talvez fosse apenas o poder macabro da Máscara, mas era difícil pensar nela enquanto a usava.
Ele teve então uma ideia, e só de pensar ele pôde sentir o objeto rosnando, ansioso para ser testado ao máximo. Dirigindo-se à Janice, pediu que ela atravessasse a rua e esperasse no bar não muito longe dali, e se ele não retornasse em um hora ela deveria ir até o apartamento dos pais. Ela quis saber mais do que estava havendo, protestando, porém não havia como resistir à vontade agora implacável de Marco. Quando ele a perdeu de vista na janela, Marco se voltou para o apartamento, sentou-se no chão, fechando os olhos, e tentou se lembrar cuidadosamente dos últimos momentos...
*
Jorge não era um homem bom. As pessoas diziam isso, e ele acreditava. Não que se importasse com o que as pessoas diziam, elas sempre falam demais. Mas ele também sentia, e imaginou em sua concepção limitada que deveria sentir na alma, que havia algo de mau em si mesmo. E apreciava isso como um vinho inestimável.
Seu tamanho impressionante geralmente levava as pessoas à conclusão lógica de que ele não era muito esperto, como um vilão de filmes de ação. Realmente, as pessoas falavam demais. Jorge não era culto nem educado, porém sempre foi muito esperto. Ele sabia, por exemplo, que o acidente noticiado algumas horas atrás não era nenhuma coincidência. Ele encontrara a máscara. Depois de tanto tempo procurando, ela não saíra da cidade. Depois de tanto tempo analisando recortes de jornal com casos suspeitos, ele começara a achar que seria impossível localizá-la de novo. Porém lá estava, um par de pixels em uma tela, por enquanto. Ele sempre se divertia quando os novatos se esqueciam das regras.
Assim que soube, juntou seus melhores homens, treinados pelo próprio Jorge, e com todas as informações sobre Marco em um laptop vasculhou a casa do advogado. Lógico, não a encontrou lá. Se fosse inteligente, ele a manteria consigo o tempo todo. Mas Jorge sabia o que Marco faria a seguir. Todos eles faziam, logo quando algo dava errado, quando não podiam mais lidar com o poder da máscara. Corriam para seus entes queridos. O que tornava mais fácil ainda fazê-los de reféns. Jorge escolheu a ex-namorada, pois no frágil estado mental que o novato com certeza se encontrava, correr para os braços da amada seria a primeira opção.
Obviamente ele não esperava que ela o avisaria tão subitamente. Seus homens desceram as escadas o mais rápido possível, mas eles jamais poderiam ser mais rápidos que um pensamento. Era só o que era preciso, um pensamento, e você era outra pessoa. Tanto poder... Não era justo que não estivesse em suas mãos.

*
Após alguns minutos de espera, Marco ouviu os homens subindo a escada. Cada fibra de seu ser o avisava para fugir, e com o poder da Máscara, ele talvez até conseguisse, mas não seria capaz de salvar Janice. Era preciso acabar com a ameaça ali, se atirar na boca do leão. Quem sabe descobrir quem eram aqueles homens e, quando possível, eliminá-los. Sim, mata-los do mesmo jeito que Marco matara aquelas pessoas no trânsito. A Máscara estava no volante, e Marco estava adorando a viagem.
Ele se concentrava ao máximo. Nunca fizera a Máscara torna-lo uma mulher antes, e a experiência era perturbadora. Mas era preciso fazer com que eles acreditassem que Marco havia fugido, e que Janice, por puro medo, continuava no apartamento. Quem sabe eles o levariam refém, e se não, pelo menos poderia arrancar alguma informação.
Os três homens entraram no apartamento como uma manada, em um contraste absurdo com o lar delicado de Janice. O mais alto, e que Marco presumia ser o líder, mal se importou com sua presença ali. Apenas xingou com ferocidade, escolheu um dos homens para segui-lo e outro para vigiar Marco, dizendo que voltaria em instantes.
Marco ficou sozinho com o homem de terno, alto, de tez bronzeada e sem brilho nenhum nos olhos. Os do advogado faiscavam.
-Será que poderia... – Marco tentou soar o mais feminino possível. – Me servir de um copo d’água?
O homem de terno hesitou um pouco, mas logo se virou para procurar um copo. Marco abandonou a concentração, agarrou um peso de papel do chão e o bateu com toda a força que pode na cabeça do homem. O vidro se esfacelou em milhares de pedaços, o homem soltou um grunhido, e caiu em cima da louça espalhada no chão.
Marco, agora vestindo a si mesmo, se apropriou da arma do homem, uma pistola com um silenciador avulso, e de um canivete e um celular que levava nos bolsos. Ele então estudou por alguns segundos o rosto moreno com barba bem aparada e cabelo ao estilo militar, e a Máscara fez o resto. Marco guardou a pistola e desceu ao encontro de seu mais novo chefe...

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A Página em Branco



A PÁGINA EM BRANCO

Haverá algo tão incrível e espantoso

Porém simples, como a página em branco?

É um campo fértil, rico e poderoso

Porém frágil, como um suave canto


A página em branco é frágil construto

Tal qual uma pomba de asas alquebradas

Que veloz deixa de ser diminuto


E alça voo, asas tão imaculadas

Toca almas de caráter resoluto

Transformando-as, com graça, em inspiradas


Há, pergunto-me, texto mais famoso

Do que a ideia em estado puro e santo

Pensamento etéreo e glorioso

Algum poeta já chegou a tanto?


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Anônimo - Capítulo 2



Marco caminhou pelo corredor, mal conseguindo conter seu espanto. Era tudo real.
Ele sabia que as pessoas ao seu lado olhariam para ele e se encheriam de respeito ao ver um senhor em um terno impecável, caminhando com resolução entre os outros empregados como se fosse dono do lugar. Marco sentia também que, se ele se dirigisse a um deles e pedisse um relatório de performance ou qualquer outro termo técnico complicado, eles se desesperariam no ato, correndo para satisfazer os desejos do homem que, provavelmente, fundara a firma. Aquele tipo de poder o consumia, e Marco se embriagava nele sem moderação.  Ele se sentia cheio de energia, ansioso para testar todas as possibilidades intermináveis que a Máscara proporcionaria...
E então, como um solo de piano interrompido em uma nota aguda demais, Marco se lembrou da funesta condição imposta pelo velho que, apenas algumas horas atrás, dera esse estranho presente. Uma semana de uso ou a morte? Marco estava perfeitamente saudável, e não planejava morrer tão cedo. Não quando ele possuía tamanho poder...
O jovem advogado alcançou sua mesa e, em uma fração de segundo, retirou a máscara e guardou-a. Seu corpo não sentiu nada, mas sua alma percebeu que as pessoas não mais olhavam com deferência e espanto. Marco tecia planos complexos e ideias intermináveis a fim de experimentar a máscara, e em uma tentativa inútil de se controlar ligou o computador mais uma vez, mas ele mal enxergava as imagens que apareciam na tela luminosa à sua frente. Não havia nada em sua vida vazia que se comparasse com a máscara, e ele mal podia esperar para usá-la de novo.
Ao final de um dos dias mais longos de sua vida, Marco arrumou suas coisas para deixar o trabalho. Não podia mais suportar a abstinência, e teria passado reto em frente ao seu chefe, se esse não tivesse gritado seu nome e gesticulado para sua sala, com um ar impiedoso. Com um grande esforço, o advogado deu meia volta e entrou na sala do chefe, tão espaçosa quando comparada com o cubículo minúsculo de Marco, e sentou-se com a mochila no colo, apalpando o tão desejado objeto de madeira.
-Marco, precisamos conversar.
O jovem mal prestava atenção no chefe. Sim, olhava para ele, mas através dele, com a imaginação correndo solta. Sua gravata queimava lhe a pele, forçando-o a alargá-la involuntariamente. O homem à sua frente continuava resmungando, mas sua voz estava abafada, como se falasse contra o vento. As próximas palavras, entretanto, tiraram o jovem de seu devaneio:
-Você está demitido, Marco.
Marco piscou, olhando sem entender. Seu chefe, um homem duns quarenta anos, franzia a testa, arregalando os olhos negros. Seu tom de pele claro fazia a luz da lâmpada refletir-se perfeitamente em sua cabeça calva, e sua expressão era de impaciência, como se não aguentasse mais a presença de um ex-empregado ali. Marco era inteiro choque. Após alguns instantes de silêncio desconfortável, Marco conseguiu balbuciar um patético “por quê?”.
-Francamente, a companhia não pode mais arcar com sua improdutividade, Marco. Nós sabemos que sua... decepção pessoal – Marco sabia que ele sabia exatamente quão afetado o jovem ficara após ter sido deixado por sua namorada – pode ter sido uma desculpa para problemas no passado, mas já faz muito tempo e, francamente, estou cansado desse seu olhar perdido! Nunca parece estar concentrado no mundo à sua volta, Marco! Já era tempo de acordar de sonhos e romances infantis.
O chefe se sentou, apanhou uma caneta, caçou uma folha qualquer em sua gaveta, e a retirou escandalosamente. Em seguida, assinou a folha, e o rabiscar da caneta no papel tornavam a raiva monumental de Marco inaudível. Ele considerou cuidadosamente usar a máscara para matar o chefe. Espera-lo do lado de fora do prédio, tomar a forma de um drogado qualquer e...
-Apesar de seu comportamento questionável, estou lhe escrevendo uma recomendação. Boa sorte no futuro.
Aquilo era o máximo que Marco podia suportar. Receber um pedaço de papel ridículo e ser mandando embora? E, pior, ser tratado como inferior por aquele homem que se considerava algum deus, detendo o poder de vida e morte, acreditando estar sendo piedoso? O jovem levantou-se de um salto e deixou a sala, desdenhando a recomendação. Agora mais do que nunca ele desejava desaparecer, nunca mais ser reconhecido. Agora Marco desejava anonimato completo.
E, sem perceber, ele já havia colocado a Máscara.
Como um viciado imediatamente após outra dose, Marco se sentiu no paraíso. Ele podia ser quem ele quisesse. Podia ser instantaneamente famoso ou jamais ser notado novamente. Sua mente atravessou as possibilidades, e ele sentia que a Máscara acompanhava seus pensamentos sem esforço, convidando-o a ser mais ousado, pedindo um verdadeiro desafio.
Mas os pensamentos do advogado estavam direcionados a sua vingança. Aquele homem medíocre estava prestes a aprender onde era o seu lugar. Se sentia tão poderoso, demitindo e contratando funcionários a seu bel-prazer... Marco considerou tomar a forma do velho de antes, passar-se por dirigente e demitir aquele que o demitira. Com certeza ele não seria questionado... Não, não seria duradouro. Teria que manchar a sua reputação de uma maneira irremediável, não dando espaço para dúvidas sobre o caráter daquele homem odioso.
A Máscara interpretou seus pensamentos, e antes que se desse conta, os outros empregados o cumprimentavam, o chamavam ‘chefe’. Marco mal pôde acreditar, embora não houvesse mais razões para duvidar. Caminhou casualmente até a janela, e examinou seu tênue reflexo no vidro transparente, mas isso foi suficiente: lá estavam a cabeça calva e os olhos negros. Ele havia se tornado o homem que tanto odiara... Literalmente.
Quão apropriado, pensou o jovem.
Saboreando cada momento, Marco desceu até a garagem do prédio, onde o manobrista lhe entregou imediatamente as chaves do carro do chefe, agora seu. Acomodou-se no banco de couro, olhou em volta e encontrou a carteira do chefe no porta-luvas. Um plano já estava consolidado na mente feroz de Marco. Ligou o motor e estava na rua, com o caríssimo automóvel. O advogado sentia o poder do motor, e se dirigia a um sinal fechado. Ele via os outros carros esperando a passagem das pessoas que, como ele, só tentavam seguir com suas vidas. Tanto pior, pensara.
Ele olhou de relance para os pedestres a sua frente, incapaz de sentir piedade. Então acelerou subitamente, e teve a impressão que não somente ele, mas a Máscara também sorria.
Os pedestres mal perceberam o que os atingira. Dois morreram no instante do impacto, um terceiro foi arremessado para longe e mais um feriu-se tentando se jogar.  Marco perdeu controle do veículo e bateu contra um poste, certo de que isso apenas adicionaria drama ao ato digno de peça teatral. Ele sentiu o cheiro de náilon quando o air bag se abriu, protegendo-o do impacto. Apesar de tudo, a Máscara continuava no lugar, e o jovem sabia que ainda mantinha a aparência de antes. Sabia também que a cena fora presenciada por dezenas de testemunhas, e quando cambaleou para fora do veículo e sentiu os olhares de horror dos transeuntes, percebeu que seu plano havia funcionado: Marco transformara o chefe em um assassino.
Ele se afastou do carro, largou deliberadamente a carteira do chefe no asfalto e correu para longe, a adrenalina impulsionando seu corpo, e alguns repentinos heróis tentaram persegui-lo, porém assim que virou a esquina Marco concentrou-se no velho repugnante e observou com satisfação seus perseguidores procurarem em vão por um homem branco careca. Não pode se conter quando viu que a identidade do homem havia sido encontrada e usou a voz pastosa do velho para perguntar, com a maior inocência do mundo, qual era o motivo de toda a comoção.
Marco nunca se sentira tão bem antes como se sentia agora, quando ouviu os indignados cidadãos apontarem para a foto na carteira de motorista e descreverem seu chefe como assassino, louco e outros adjetivos mais fortes. O advogado acenou com a cabeça, adicionando um genérico comentário ‘o mundo está perdido’ que julgara apropriado para um velho e se afastou quando ouviu as primeiras sirenes, muito embora não houvesse a menor possibilidade de que ele fosse conectado ao acidente.
O que era o poder de um superior em uma firma, quando comparado ao que Marco ostentava agora? Não demoraria muito até que ele fosse procurado pela polícia e preso, sem jamais entender. Talvez ele até pensasse estar louco, o que apenas tornaria a vingança mais deliciosa.
Quando estava longe de quaisquer olhares, Marco retirou a máscara, e o mundo perdeu a cor. Ele sentia sua mente mais lenta, sem ânimo nem propósito. No momento seguinte, a culpa o atingiu como o carro atingira aqueles pedestres minutos antes. Houveram mortes, feridos... Tudo para quê? Vingança... Um sentimento instintivo, inerente, insaciável e inescrupuloso. Marco conseguira o que queria, e começou a perceber que jamais poderia ter feito o que fez se não instigado pela máscara. Ele se lembrou da sensação de êxtase ao realizar sua vingança, convencido de que não havia nada melhor no mundo, seus pensamentos belicosos impulsionados pelo poder embriagante da máscara. Todo esse êxtase se fora e só restava a culpa, igualmente gigantesca, porém racional.
Marco andava sem rumo, perdido em seus pensamentos e em seu pesar, prometendo a si mesmo nunca mais tocar na maldita máscara, quanto estacou na calçada. Olhava fixamente para uma tela de televisão, sintonizada em um canal de notícias que relatava um acidente especialmente brutal em uma movimentada avenida da cidade. Seu pesar e culpa foram imediatamente substituídos por medo e desespero.
Pois na televisão, o noticiário passava as imagens inéditas de uma câmera de trânsito... Minúscula, quase invisível, mas que estava lá, e gravara a cena inteira. Realmente, era grandiosa como o ato final de uma ópera particularmente macabra. Exatamente como o velho dissera: As testemunhas viram a imagem calva de seu chefe atropelando aquelas pessoas. Porém, na câmera, as imagens mostravam um homem magro e alto, vestindo uma máscara de madeira. O fato de o acidente ter sido tão violento foi eclipsado: Todos os canais falavam do atropelador mascarado, e o que significava aquele objeto tão incomum. A polícia já traçava um perfil baseado no tipo físico do homem, e Marco empalideceu quando viu na tela um oficial descrever a aparência do advogado.
Ele quase podia ouvir a máscara gargalhar.