segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Anônimo - Capítulo 2



Marco caminhou pelo corredor, mal conseguindo conter seu espanto. Era tudo real.
Ele sabia que as pessoas ao seu lado olhariam para ele e se encheriam de respeito ao ver um senhor em um terno impecável, caminhando com resolução entre os outros empregados como se fosse dono do lugar. Marco sentia também que, se ele se dirigisse a um deles e pedisse um relatório de performance ou qualquer outro termo técnico complicado, eles se desesperariam no ato, correndo para satisfazer os desejos do homem que, provavelmente, fundara a firma. Aquele tipo de poder o consumia, e Marco se embriagava nele sem moderação.  Ele se sentia cheio de energia, ansioso para testar todas as possibilidades intermináveis que a Máscara proporcionaria...
E então, como um solo de piano interrompido em uma nota aguda demais, Marco se lembrou da funesta condição imposta pelo velho que, apenas algumas horas atrás, dera esse estranho presente. Uma semana de uso ou a morte? Marco estava perfeitamente saudável, e não planejava morrer tão cedo. Não quando ele possuía tamanho poder...
O jovem advogado alcançou sua mesa e, em uma fração de segundo, retirou a máscara e guardou-a. Seu corpo não sentiu nada, mas sua alma percebeu que as pessoas não mais olhavam com deferência e espanto. Marco tecia planos complexos e ideias intermináveis a fim de experimentar a máscara, e em uma tentativa inútil de se controlar ligou o computador mais uma vez, mas ele mal enxergava as imagens que apareciam na tela luminosa à sua frente. Não havia nada em sua vida vazia que se comparasse com a máscara, e ele mal podia esperar para usá-la de novo.
Ao final de um dos dias mais longos de sua vida, Marco arrumou suas coisas para deixar o trabalho. Não podia mais suportar a abstinência, e teria passado reto em frente ao seu chefe, se esse não tivesse gritado seu nome e gesticulado para sua sala, com um ar impiedoso. Com um grande esforço, o advogado deu meia volta e entrou na sala do chefe, tão espaçosa quando comparada com o cubículo minúsculo de Marco, e sentou-se com a mochila no colo, apalpando o tão desejado objeto de madeira.
-Marco, precisamos conversar.
O jovem mal prestava atenção no chefe. Sim, olhava para ele, mas através dele, com a imaginação correndo solta. Sua gravata queimava lhe a pele, forçando-o a alargá-la involuntariamente. O homem à sua frente continuava resmungando, mas sua voz estava abafada, como se falasse contra o vento. As próximas palavras, entretanto, tiraram o jovem de seu devaneio:
-Você está demitido, Marco.
Marco piscou, olhando sem entender. Seu chefe, um homem duns quarenta anos, franzia a testa, arregalando os olhos negros. Seu tom de pele claro fazia a luz da lâmpada refletir-se perfeitamente em sua cabeça calva, e sua expressão era de impaciência, como se não aguentasse mais a presença de um ex-empregado ali. Marco era inteiro choque. Após alguns instantes de silêncio desconfortável, Marco conseguiu balbuciar um patético “por quê?”.
-Francamente, a companhia não pode mais arcar com sua improdutividade, Marco. Nós sabemos que sua... decepção pessoal – Marco sabia que ele sabia exatamente quão afetado o jovem ficara após ter sido deixado por sua namorada – pode ter sido uma desculpa para problemas no passado, mas já faz muito tempo e, francamente, estou cansado desse seu olhar perdido! Nunca parece estar concentrado no mundo à sua volta, Marco! Já era tempo de acordar de sonhos e romances infantis.
O chefe se sentou, apanhou uma caneta, caçou uma folha qualquer em sua gaveta, e a retirou escandalosamente. Em seguida, assinou a folha, e o rabiscar da caneta no papel tornavam a raiva monumental de Marco inaudível. Ele considerou cuidadosamente usar a máscara para matar o chefe. Espera-lo do lado de fora do prédio, tomar a forma de um drogado qualquer e...
-Apesar de seu comportamento questionável, estou lhe escrevendo uma recomendação. Boa sorte no futuro.
Aquilo era o máximo que Marco podia suportar. Receber um pedaço de papel ridículo e ser mandando embora? E, pior, ser tratado como inferior por aquele homem que se considerava algum deus, detendo o poder de vida e morte, acreditando estar sendo piedoso? O jovem levantou-se de um salto e deixou a sala, desdenhando a recomendação. Agora mais do que nunca ele desejava desaparecer, nunca mais ser reconhecido. Agora Marco desejava anonimato completo.
E, sem perceber, ele já havia colocado a Máscara.
Como um viciado imediatamente após outra dose, Marco se sentiu no paraíso. Ele podia ser quem ele quisesse. Podia ser instantaneamente famoso ou jamais ser notado novamente. Sua mente atravessou as possibilidades, e ele sentia que a Máscara acompanhava seus pensamentos sem esforço, convidando-o a ser mais ousado, pedindo um verdadeiro desafio.
Mas os pensamentos do advogado estavam direcionados a sua vingança. Aquele homem medíocre estava prestes a aprender onde era o seu lugar. Se sentia tão poderoso, demitindo e contratando funcionários a seu bel-prazer... Marco considerou tomar a forma do velho de antes, passar-se por dirigente e demitir aquele que o demitira. Com certeza ele não seria questionado... Não, não seria duradouro. Teria que manchar a sua reputação de uma maneira irremediável, não dando espaço para dúvidas sobre o caráter daquele homem odioso.
A Máscara interpretou seus pensamentos, e antes que se desse conta, os outros empregados o cumprimentavam, o chamavam ‘chefe’. Marco mal pôde acreditar, embora não houvesse mais razões para duvidar. Caminhou casualmente até a janela, e examinou seu tênue reflexo no vidro transparente, mas isso foi suficiente: lá estavam a cabeça calva e os olhos negros. Ele havia se tornado o homem que tanto odiara... Literalmente.
Quão apropriado, pensou o jovem.
Saboreando cada momento, Marco desceu até a garagem do prédio, onde o manobrista lhe entregou imediatamente as chaves do carro do chefe, agora seu. Acomodou-se no banco de couro, olhou em volta e encontrou a carteira do chefe no porta-luvas. Um plano já estava consolidado na mente feroz de Marco. Ligou o motor e estava na rua, com o caríssimo automóvel. O advogado sentia o poder do motor, e se dirigia a um sinal fechado. Ele via os outros carros esperando a passagem das pessoas que, como ele, só tentavam seguir com suas vidas. Tanto pior, pensara.
Ele olhou de relance para os pedestres a sua frente, incapaz de sentir piedade. Então acelerou subitamente, e teve a impressão que não somente ele, mas a Máscara também sorria.
Os pedestres mal perceberam o que os atingira. Dois morreram no instante do impacto, um terceiro foi arremessado para longe e mais um feriu-se tentando se jogar.  Marco perdeu controle do veículo e bateu contra um poste, certo de que isso apenas adicionaria drama ao ato digno de peça teatral. Ele sentiu o cheiro de náilon quando o air bag se abriu, protegendo-o do impacto. Apesar de tudo, a Máscara continuava no lugar, e o jovem sabia que ainda mantinha a aparência de antes. Sabia também que a cena fora presenciada por dezenas de testemunhas, e quando cambaleou para fora do veículo e sentiu os olhares de horror dos transeuntes, percebeu que seu plano havia funcionado: Marco transformara o chefe em um assassino.
Ele se afastou do carro, largou deliberadamente a carteira do chefe no asfalto e correu para longe, a adrenalina impulsionando seu corpo, e alguns repentinos heróis tentaram persegui-lo, porém assim que virou a esquina Marco concentrou-se no velho repugnante e observou com satisfação seus perseguidores procurarem em vão por um homem branco careca. Não pode se conter quando viu que a identidade do homem havia sido encontrada e usou a voz pastosa do velho para perguntar, com a maior inocência do mundo, qual era o motivo de toda a comoção.
Marco nunca se sentira tão bem antes como se sentia agora, quando ouviu os indignados cidadãos apontarem para a foto na carteira de motorista e descreverem seu chefe como assassino, louco e outros adjetivos mais fortes. O advogado acenou com a cabeça, adicionando um genérico comentário ‘o mundo está perdido’ que julgara apropriado para um velho e se afastou quando ouviu as primeiras sirenes, muito embora não houvesse a menor possibilidade de que ele fosse conectado ao acidente.
O que era o poder de um superior em uma firma, quando comparado ao que Marco ostentava agora? Não demoraria muito até que ele fosse procurado pela polícia e preso, sem jamais entender. Talvez ele até pensasse estar louco, o que apenas tornaria a vingança mais deliciosa.
Quando estava longe de quaisquer olhares, Marco retirou a máscara, e o mundo perdeu a cor. Ele sentia sua mente mais lenta, sem ânimo nem propósito. No momento seguinte, a culpa o atingiu como o carro atingira aqueles pedestres minutos antes. Houveram mortes, feridos... Tudo para quê? Vingança... Um sentimento instintivo, inerente, insaciável e inescrupuloso. Marco conseguira o que queria, e começou a perceber que jamais poderia ter feito o que fez se não instigado pela máscara. Ele se lembrou da sensação de êxtase ao realizar sua vingança, convencido de que não havia nada melhor no mundo, seus pensamentos belicosos impulsionados pelo poder embriagante da máscara. Todo esse êxtase se fora e só restava a culpa, igualmente gigantesca, porém racional.
Marco andava sem rumo, perdido em seus pensamentos e em seu pesar, prometendo a si mesmo nunca mais tocar na maldita máscara, quanto estacou na calçada. Olhava fixamente para uma tela de televisão, sintonizada em um canal de notícias que relatava um acidente especialmente brutal em uma movimentada avenida da cidade. Seu pesar e culpa foram imediatamente substituídos por medo e desespero.
Pois na televisão, o noticiário passava as imagens inéditas de uma câmera de trânsito... Minúscula, quase invisível, mas que estava lá, e gravara a cena inteira. Realmente, era grandiosa como o ato final de uma ópera particularmente macabra. Exatamente como o velho dissera: As testemunhas viram a imagem calva de seu chefe atropelando aquelas pessoas. Porém, na câmera, as imagens mostravam um homem magro e alto, vestindo uma máscara de madeira. O fato de o acidente ter sido tão violento foi eclipsado: Todos os canais falavam do atropelador mascarado, e o que significava aquele objeto tão incomum. A polícia já traçava um perfil baseado no tipo físico do homem, e Marco empalideceu quando viu na tela um oficial descrever a aparência do advogado.
Ele quase podia ouvir a máscara gargalhar.

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