quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Anônimo - Capítulo 3


É fácil se sentir culpado quando se está seguro. Você se sente inexplicavelmente protegido, uma ilusão de que, por mais horríveis que sejam os problemas dos outros, eles jamais o atingirão. Era assim quando Marco tinha o poder do Anonimato a seu favor. Ninguém jamais poderia pegá-lo. Agora, Marco estava assustado, irritadiço, com os reflexos aumentados: ouvia sirenes em todo lugar, agarrava a mochila contra o corpo, apalpando o objeto maldito.
Ele havia chegado a uma conclusão: era, de fato, uma maldição, não um presente. Ele jamais entenderia porque o velho decrépito lhe dera tal fardo para carregar. Mas, como todo viciado, embora Marco tivesse consciência do mal que sua droga fazia, era impossível larga-la. Quando usava a máscara, ele não tinha dúvidas, não hesitava: era supremo e resoluto, um Deus entre os homens. Não era Marco, definitivamente.
Dando encontrões em cada parede, Marco conseguiu chegar ao seu apartamento e forçar suas mãos trêmulas a abrir a porta. Porém ele não precisou girar a chave. Ao adentrar o pequeno cômodo, Marco agarrou a mochila contra o peito.
Seus móveis haviam sido arrastados, suas gavetas reviradas, e todos os seus pertences espalhados no chão sujo, inclusive o dinheiro vivo, jogado com desdém ao lado das panelas arremessadas pelo apartamento. Seu impulso inicial foi, como havia sido nas últimas horas, pôr a máscara. Ela saberia o que fazer. Porém Marco se lembrou que a máscara poderia ser vista nas câmeras, que o identificariam imediatamente.
Depois, quando a razão se arrastou de volta ao seu cérebro, Marco imaginou que talvez alguém estivesse esperando por ele.
Vasculhando os utensílios de cozinha derrubados, o advogado pegou a faca mais ameaçadora que conseguiu achar e avançou, com a coragem de um animal acuado, pelo apartamento. Checou seu quarto e o banheiro algumas vezes antes de se convencer que estava sozinho, e então se sentou no sofá, devastado. Ele teria ligado a televisão, mas tinha medo que fosse encontrar seu rosto, ou a máscara, nos noticiários.
Marco não sabia o que fazer. Não tinha família ou amigos para correr, tinha apenas uma ex-namorada da qual guardava um rancor profundo. Jamais poderia voltar ao trabalho, mas também não podia ficar no apartamento. E se quem vasculhou o lugar voltasse? Ele não podia correr esse risco.
Marco se levantou, sempre agarrado a mochila cujo único conteúdo era a máscara, e desceu o mais rápido que pôde para a rua. Ele sempre se orgulhou de saber o caminho para a casa de Janice de olhos fechados. Em dez minutos ele estava lá, ofegante, apertando o interfone, implorando para que a mulher que ele tentara odiar o deixasse entrar.
A voz dela, mesmo que abafada pelo interfone, atingiu Marco de um jeito que ele não havia previsto. Quando respondeu, foi gaguejando:
-Ja... Janice! Não, não desliga! Me deixa entrar! Por favor, não é o que você tá pensando...
Ele ouviu um barulho vago no fundo, e mais nada. O interfone silenciou-se. Mas Marco mal teve tempo de remoer suas mágoas, quando, de súbito, o interfone fez mais um barulho e ele ouviu a voz de Janice mais uma vez:
-MARCO, CORRA!
Então ouviu-se um baque surdo e um som de passos, e o advogado não teve tempo de pensar. Três homens em ternos impecáveis, o dobro de seu tamanho e empunhando pistolas, saíram em disparada da fachada do prédio e olharam ao seu redor confusos. Um deles segurava uma foto da identidade de Marco na mão, e procurava inutilmente na multidão o rosto impresso.
Pois Marco já não era mais Marco, e sim um bêbado barbudo e gordo, jogado na sarjeta com roupas esfarrapadas. Ele estava apavorado, seu medo impulsionando sua imaginação, e a Máscara apenas obedeceu, transformando-o no bêbado mais ordinário e indigno de atenção de todos os tempos. Um dos homens xingou em voz alta, deu instruções para os outros dois e disparou pela calçada enquanto os outros cruzavam a rua com uma velocidade que faz Marco perceber que ele jamais os despistaria se tivesse que fugir.
Mas ele não tinha que fugir, muito menos lutar. Ele tinha a Máscara, e poderia se esconder por mil anos se precisasse. E realmente teria se escondido, caso ele fosse Marco. Mas não era. Agora ele tinha sua mente alimentada pelo poder sobrenatural da Máscara, e ela lhe dizia o que fazer. Seus pensamentos estava claros. Ele alterou sua forma para a de um policial, o mais comum que um policial poderia ser, e se dirigiu ao prédio da namorada. Quando estava na escada, Marco retornou a sua forma normal, porém continuou vestindo o objeto. Ele tinha que ser forte agora, e a Máscara garantiria que assim fosse.
Ao entrar no apartamento, que o advogado se lembrava ser tão delicado e arrumado, encontrou Janice no meio de um caos de objetos quebrados e móveis fora do lugar, uma cena muito parecida com a que encontrara no seu apartamento. Ele não teve dúvidas, e percebeu que havia alguém atrás dele especificamente. O Marco comum teria se aterrorizado, mas a Máscara apenas se empolgou ainda mais. Quando viu Marco, Janice o abraçou com lágrimas nos olhos.
-Marco! Esses homens apareceram perguntando por você e eu não soube o que pensar! Quem eram aquelas pessoas? O que elas queriam com...
Marco a silenciou, pondo o dedo indicador sobre seus lábios. Ele se sentiu tentado a retirar a Máscara e beijá-la, mas como um como um cavaleiro batendo as esporas, o objeto gritava por ação. Obedecendo-o, o advogado procurou pelo apartamento qualquer evidência de quem seriam aquelas pessoas. Sem encontrar nada, ele se sentou ao lado de Janice, sua beleza o estonteando mesmo agora, e começou um interrogatório minucioso. Ela estava abalada e assustada com a resolução do ex-namorado, por quem ela sempre tomara por um preguiçoso e indiferente, e portanto respondeu todas as perguntas o melhor que pode.
Ela não sabia de muita coisa. Aparentemente os homens sabiam a que horas ela voltaria do trabalho e estavam esperando por ela. Fizeram uma série de perguntas sobre Marco, principalmente sobre o que ele estava fazendo nos últimos dias, e então ouviram o interfone tocar e resolveram usar Janice como um refém.
Era pouco, mas era um começo. Se fossem policiais, os homens teriam mostrado um distintivo, porém a forma como estavam armados e vestidos sugeria treinamento militar. O método de usar reféns também era mais uma evidência de que esses homens estavam dispostos a qualquer coisa... Porém nem Marco nem a Máscara conseguiam pensar por quê.
-Logo eles estarão de volta – disse ele em voz alta -  Precisamos achar um lugar seguro.
-Poderíamos... – Janice ainda tentava raciocinar apesar da avalanche de perguntas que surgiam em sua mente – Poderíamos ir até a casa dos meus pais...
-Não, eles com certeza estarão preparados para isso. Não há nenhum outro lugar? Talvez um primo distante, um amigo não tão próximo?
Janice balançou a cabeça negativamente. Seu semblante era um misto de medo e surpresa absolutos, e o homem que estava na frente dela agora, tão diferente daquele que fora seu namorado, o assustava ainda mais. Marco, por outro lado, mal podia se conter. Ele não tinha ideia de por que estava sendo perseguido, e a ação o deixava sedento por mais. Ou talvez fosse apenas o poder macabro da Máscara, mas era difícil pensar nela enquanto a usava.
Ele teve então uma ideia, e só de pensar ele pôde sentir o objeto rosnando, ansioso para ser testado ao máximo. Dirigindo-se à Janice, pediu que ela atravessasse a rua e esperasse no bar não muito longe dali, e se ele não retornasse em um hora ela deveria ir até o apartamento dos pais. Ela quis saber mais do que estava havendo, protestando, porém não havia como resistir à vontade agora implacável de Marco. Quando ele a perdeu de vista na janela, Marco se voltou para o apartamento, sentou-se no chão, fechando os olhos, e tentou se lembrar cuidadosamente dos últimos momentos...
*
Jorge não era um homem bom. As pessoas diziam isso, e ele acreditava. Não que se importasse com o que as pessoas diziam, elas sempre falam demais. Mas ele também sentia, e imaginou em sua concepção limitada que deveria sentir na alma, que havia algo de mau em si mesmo. E apreciava isso como um vinho inestimável.
Seu tamanho impressionante geralmente levava as pessoas à conclusão lógica de que ele não era muito esperto, como um vilão de filmes de ação. Realmente, as pessoas falavam demais. Jorge não era culto nem educado, porém sempre foi muito esperto. Ele sabia, por exemplo, que o acidente noticiado algumas horas atrás não era nenhuma coincidência. Ele encontrara a máscara. Depois de tanto tempo procurando, ela não saíra da cidade. Depois de tanto tempo analisando recortes de jornal com casos suspeitos, ele começara a achar que seria impossível localizá-la de novo. Porém lá estava, um par de pixels em uma tela, por enquanto. Ele sempre se divertia quando os novatos se esqueciam das regras.
Assim que soube, juntou seus melhores homens, treinados pelo próprio Jorge, e com todas as informações sobre Marco em um laptop vasculhou a casa do advogado. Lógico, não a encontrou lá. Se fosse inteligente, ele a manteria consigo o tempo todo. Mas Jorge sabia o que Marco faria a seguir. Todos eles faziam, logo quando algo dava errado, quando não podiam mais lidar com o poder da máscara. Corriam para seus entes queridos. O que tornava mais fácil ainda fazê-los de reféns. Jorge escolheu a ex-namorada, pois no frágil estado mental que o novato com certeza se encontrava, correr para os braços da amada seria a primeira opção.
Obviamente ele não esperava que ela o avisaria tão subitamente. Seus homens desceram as escadas o mais rápido possível, mas eles jamais poderiam ser mais rápidos que um pensamento. Era só o que era preciso, um pensamento, e você era outra pessoa. Tanto poder... Não era justo que não estivesse em suas mãos.

*
Após alguns minutos de espera, Marco ouviu os homens subindo a escada. Cada fibra de seu ser o avisava para fugir, e com o poder da Máscara, ele talvez até conseguisse, mas não seria capaz de salvar Janice. Era preciso acabar com a ameaça ali, se atirar na boca do leão. Quem sabe descobrir quem eram aqueles homens e, quando possível, eliminá-los. Sim, mata-los do mesmo jeito que Marco matara aquelas pessoas no trânsito. A Máscara estava no volante, e Marco estava adorando a viagem.
Ele se concentrava ao máximo. Nunca fizera a Máscara torna-lo uma mulher antes, e a experiência era perturbadora. Mas era preciso fazer com que eles acreditassem que Marco havia fugido, e que Janice, por puro medo, continuava no apartamento. Quem sabe eles o levariam refém, e se não, pelo menos poderia arrancar alguma informação.
Os três homens entraram no apartamento como uma manada, em um contraste absurdo com o lar delicado de Janice. O mais alto, e que Marco presumia ser o líder, mal se importou com sua presença ali. Apenas xingou com ferocidade, escolheu um dos homens para segui-lo e outro para vigiar Marco, dizendo que voltaria em instantes.
Marco ficou sozinho com o homem de terno, alto, de tez bronzeada e sem brilho nenhum nos olhos. Os do advogado faiscavam.
-Será que poderia... – Marco tentou soar o mais feminino possível. – Me servir de um copo d’água?
O homem de terno hesitou um pouco, mas logo se virou para procurar um copo. Marco abandonou a concentração, agarrou um peso de papel do chão e o bateu com toda a força que pode na cabeça do homem. O vidro se esfacelou em milhares de pedaços, o homem soltou um grunhido, e caiu em cima da louça espalhada no chão.
Marco, agora vestindo a si mesmo, se apropriou da arma do homem, uma pistola com um silenciador avulso, e de um canivete e um celular que levava nos bolsos. Ele então estudou por alguns segundos o rosto moreno com barba bem aparada e cabelo ao estilo militar, e a Máscara fez o resto. Marco guardou a pistola e desceu ao encontro de seu mais novo chefe...

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