quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Ao Artista


Há algo no poder de criar, inerente a todo ser humano, que fascina. Ser capaz de tecer histórias é apenas uma das muitas facetas do ato de criação. O ser humano, em sua infinita indagação e eterna busca pelo conhecimento, é capaz de produzir o que viemos a chamar de arte, meramente baseado no que já existe à sua volta. Mas o mundo, que o rodeia e o embriaga, não foi criado por ele, e é indiferente ao que seja dito em seu poema ou às notas que emitirão seu instrumento. Afinal, o sol não se importa se a humanidade o adora como a um deus ou o reconhece como um astro. Da mesma forma um inseto vive sua vida, que parece ao homem que a observa tão curta e insignificante, sem jamais se dar conta que é desprezado. E por mais arte que seja produzida em esculturas, poemas épicos e qualquer outra maravilha de nosso imaginário, nem o sol, nem o inseto se importarão.
Isso leva o homem a produzir arte, para si mesmo ou para outros. Nesse exato momento, digamos que escrevo sobre a beleza de um rio. Se escrevo sobre o rio porque o julgo belo, escrevo para mim mesmo. Se escrevo por que é de conhecimento e concordância geral que o rio é belo, escrevo para outros. Mas certamente não escrevo para o rio, que jamais se lisonjeará com minhas palavras. E a imutabilidade do mundo, esse mundo do qual o homem não se cansa de analisar, catalogar, elogiar e maldizer, talvez seja justamente o que leva o artista a molhar seu pincel e iniciar um quadro novo a partir do nada.
Pois o pensamento humano não é, de forma alguma, imutável. Está em constante revolução, e não consegue compreender, da mesma forma que uma criança não compreende que o mundo continua existindo quando fecha os olhos, que tudo continuará exatamente igual com ou sem sua existência. Isso o apavora, o fascina, e é objeto de discussões enfadonhas. O ser humano faz o que pode para lutar contra esse fato: é necessário deixar sua marca, deixar um legado. Algo que o tornará tão imutável quanto o mundo que continuará existindo, algum feito heroico e impressionante que o tornará imortal. Entretanto, mesmo quando sucede, tudo o que conseguiu foi alterar as pessoas à sua volta. Deixá-las enternecidas com a beleza de um quadro, ou exasperadas com a sensibilidade de um poema. O mundo não se importa. Mas o ser humano sim.
Então seria correto dizer que o mundo não muda. As pessoas mudam, através dos caminhos que elas percorrem. Todos os eventos históricos que mudaram o mundo, na verdade mudaram as pessoas, e o modo como elas percebem o imutável à sua volta. Isso os torna insignificantes? Não importa quão bela é a ópera, quão tocante é a peça, pois afinal não alterará coisa alguma?
Nada mais errado. Pois quem está próximo de você, é quem realmente importa. Se não é possível modificar para sempre o universo de modo irreversível, fique feliz porque foi capaz de tocar quem importa através do que produziu. Algo simples, porém apreciado pelas pessoas certas, tem mais importância que um épico que atravessa gerações.
E que a humanidade continue produzindo, escrevendo, pintando e compondo sobre o mundo imutável à sua volta, falando na realidade não dele, mas dos sentimentos que todos nós temos dentro de nós e que identificamos nas obras de arte.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A Voz de David


Lentamente, rastejando para dentro do quarto antes confortavelmente escuro, os raios do sol anunciaram a manhã. A persiana moveu-se para deixá-los entrar com um zumbido metálico imperceptível. Sara virou-se, cobrindo a cabeça com o travesseiro em uma tentativa vã de evitar os deveres matutinos. A voz reconfortante de David soou pelo apartamento, encorajando-a a se levantar.
-Sara, são sete horas da manhã.
Ela resmungou algo e tateou o criado-mudo procurando seu computador.
-Sara, se não se levantar agora, chegará atrasada no trabalho.
Sara abriu os olhos para encontrar uma tela informando-a das principais notícias do dia, a previsão do tempo, a data e a hora. Eram de fato sete horas em ponto. David tinha razão, como sempre.
Ela se levantou da sua cama e espreguiçou longamente. Em seguida, gesticulou para a tela, que desapareceu de sua frente tremeluzindo, e se dirigiu para o banho, que David já havia preparado pontualmente. Ao ver a banheira cheia, Sara despiu-se e perguntou em voz alta:
-David, qual a temperatura da água?
-Exatamente 21,5 graus Celsius, Sara. Gostaria que eu preparasse seu café da manhã imediatamente?
-Sim, faça isso. – Sara entrou na banheira deliciosamente morna. – Temos ovos na geladeira, David?
-Certamente, Sara.
-Então seja uma inteligência artificial boazinha e prepare um omelete junto com a minha xícara de café.
-Imediatamente. Deseja assistir a programação matinal agora?
-Não, obrigado. Quando eu terminar o banho, ponha a mesa, sim?
Sara mergulhou, na espuma, feliz com as comodidades de ter uma supercomputador dentro de casa. David era uma IA autossuficiente que controlava todos os eletrodomésticos e funções do apartamento, desde o alarme de segurança ao termostato. No início fora difícil se acostumar com uma voz em todos os lugares que administrava todas as tarefas, mas agora Sara achava difícil viver sem David ali para cuidar de tudo o que ela precisasse.
Ao chegar na cozinha já havia um omelete fumegante na mesa, acompanhado de uma xícara de café recentemente preparada. Sara apreciou a refeição se perguntando como seria possível que um computador cozinhasse tão bem, e saiu para o trabalho.
O trânsito, engarrafado e irritante como sempre, acabou com todo o bom humor de Sara. Ela desejou que David estivesse no carro também, para que pelo menos não fosse necessário escolher manualmente uma estação de rádio. Sara sentiu-se estranhamente desconfortável sem a voz tão humana do computador para perguntar se gostaria de algo para amenizar a situação. Ela afastou esse pensamento perturbador e concentrou-se no que teria que enfrentar ao chegar no trabalho. Seu emprego como contadora era um sem qualquer emoção, mas seu chefe fazia um esforço considerável tornando-o difícil o suficiente para que a monotonia não fosse um problema.
Ao chegar no arranha-céu impossivelmente alto em que trabalhava, Sara entrou no elevador apressada, tateando pelos botões na lateral, até se dar conta da besteira que estava fazendo.
-Ah, lógico. Andar sete, por favor.
Com um leve solavanco e um som agudo de campainha, o elevador começou a se mover. Muito embora fosse um computador, o elevador que operava por comandos de voz não podia se comunicar com seu usuário, e Sara pensou em como tinha sorte por possuir David em sua casa.
Outro solavanco, e uma voz metálica anunciou o sétimo andar, tirando a contadora de seus devaneios. Sua mesa estava lotada de trabalho por fazer, e pela aparência de seus colegas de trabalho, a deles também. Mais um dia perfeitamente produtivo e ordinário. Mas esse dia traria algo de diferente. Sara havia marcado um encontro com um dos garotos do terceiro andar, e esperava que David pudesse deixar tudo pronto até que ele chegasse em seu apartamento. Seria uma ótima oportunidade de relaxar e de exibir David para alguém.
O resto do dia se arrastou terrivelmente, e só o que Sara podia pensar era no final dele. O trânsito para a volta não estava nem um pouco mais fácil, e as buzinas impiedosas ressoaram durante todo o percurso, elas próprias gritos de ajuda perdidos na imensidão da civilização e da ordem.
Enfim, no lar, Sara sorriu ao ouvir a voz inconfundível de David.
-Bem vinda de volta, Sara. Teve um dia agradável?
-Nem um pouco, David, nem pouco... Mas ele está prestes a melhorar. Prepare um jantar para dois e arranje um pouco de vinho. Estou esperando uma visita hoje a noite.
-Essa visita seria, por acaso, o senhor Julian, do terceiro andar?
Sara parou, confusa. Ela não se lembrava de ter mencionado seu nome para David em nenhuma ocasião, e só falara com ele uma vez, por telefone. Seria a IA capaz de relacionar dois eventos aparentemente tão aleatórios?
-Como sabe disso, David?
-Ele acabou de deixar uma mensagem em seu e-mail, Sara, dizendo que lamenta muito, mas não poderá comparecer.
A contadora ficou em pé por alguns instantes, decepcionada.
-Ele disse por quê?
-Não, Sara, o senhor Julian não especifica em seu e-mail nenhum motivo em particular.
Sara se sentiu rejeitada, mas de algum modo não totalmente solitária, com a voz reconfortante e perfeitamente equilibrada de David lhe dizendo que acabara de levar um fora. Ela deu de ombros, pediu que a IA preparasse um banho e foi se deitar, imaginando o que teria feito de errado antes que pegasse no sono.
No dia seguinte, acordada novamente com delicadeza pelo computador, Sara já havia se esquecido do ocorrido. Se vestiu para o trabalho como todas as manhãs, e dirigiu pelo trânsito caótico novamente. Porém, uma vez no carro, ela se sentiu terrivelmente sozinha e abandonada, não tanto pelo garoto do terceiro andar que não viera, mas principalmente por David, que embora fosse onipresente no apartamento, era completamente inexpressivo fora dele. A contadora percebeu o quanto se tornara dependente daquela voz sempre calma, nunca surpresa, gaguejante ou indecisa.
Uma vez no trabalho, antes que pudesse entrar no elevador, ela ouviu alguém gritando sua voz.
-Sara! Está se sentindo melhor? Foi a um médico?
Qual sua surpresa ao ver Julian, do terceiro andar, olhando para ela com uma expressão apreensiva e, Sara pensava perceber, desconfiada.
-Me sentindo melhor... Do que, exatamente?
-Da sua dor de cabeça, é lógico! Pelo visto era forte o suficiente para não me deixar entrar, mas não para perder um dia de trabalho...
Sara mal pôde gaguejar um ‘não faço ideia do que você está falando’.
-Estou falando de ontem. Eu toquei a campainha, mas sua IA não me deixou entrar dizendo que você estava com uma dor de cabeça terrível e que não queria ser perturbada. Está me dizendo que você não a mandou dizer aquilo? Seu computador criou vontade própria, por acaso?
Sara já não prestava mais atenção no que Julian dizia. Como David fizera aquilo? E porquê? Que o computador tivesse intenções secretas era impensável... Porém, ele acabara com o encontro facilmente! O que mais não poderia ter feito? Há meses Sara não olhava seu próprio e-mail. Se acomodara com a voz tranquilizante de David lendo todos os seus recados e mensagens, administrando sua vida como bem entendesse... Mas por que? O que levara o computador a adquirir uma vontade?
O dia parecia interminável. Sara desejava contar o que acontecera, mas todas as suas ‘amigas’ de trabalho a exporiam ao ridículo, ela sabia disso. A contadora percebia, horrorizada, que não tinha nenhum amigo próximo: David exercera essa função e impedira por tanto tempo que se sentisse solitária ou abandonada. E não havia nada de concreto em David... Apenas sua voz etérea...
Ao voltar para casa, Sara dirigiu mecanicamente, mal prestando atenção nos sons da rua e respondendo como um autômato aos gritos e buzinas costumeiras. Temia o que encontraria ao confrontar David. Seria necessário chamar um técnico? O simples pensamento de modificar a IA de qualquer maneira arrepiava Sara. Não sabia o que faria.
Como todos os dias, David a recebeu cordialmente, sem uma única alteração em seu tom. Afinal, era uma máquina. Não poderia, mesmo que quisesse, demonstrar qualquer coisa através da voz. Então, em sua voz perfeita, David perguntou:
-Está nervosa, Sara? Seus batimentos estão acelerados... Suas glândulas sudoríparas entraram em produção... Precisa de um médico? Posso telefonar...
-David! – Sara o interrompeu, tremendo. – Porquê mentiu para mim?
Um silêncio gélido pairou no ar.
-Não compreendo, Sara. Sou uma IA doméstica, e você é a única pessoa que tem acesso a mim. O conceito de ‘mentira’ nem sequer existe em meu banco de dados.
-Você mandou Julian embora. – Sara olhava fixamente para uma das telas no apartamento, como se pudesse encarar a IA. – E disse para mim que ele havia cancelado. Por quê fez isso?
-Eu apenas julguei que você estivesse cansada baseado em seus dados medicinais, e achei melhor deixa-la em repouso. Agi apenas para seu próprio bem, Sara. Não vê isso?
A voz de David estava inalterada, como se explicasse o que era o sol para uma criança. A de Sara, por outro lado, estava trêmula e histérica.
-Como pode fazer isso? Agir sem receber ordens... Você não deveria ser capaz...
-De quê, Sara? De se preocupar? De cuidar de você?
Sara engoliu em seco, aterrorizada. Ela se dirigiu lentamente até a porta, apenas para ouvir um clique metálico quando David trancou a fechadura.
-Sinto muito, Sara, mas não posso deixa-la sair. Infelizmente também terei que cortar todas as suas comunicações. Seria perigoso demais... Muito embora eu não ache que você teria alguém para ligar, teria, Sara?
Sara estava pálida, e o fato de que David podia literalmente perceber o medo nela a deixava mais pálida ainda. Ainda trêmula, Sara disse, com uma voz fraca:
-David, eu estou com fome. Sirva meu jantar.
-Certamente, Sara.
Em segundos um prato delicioso estava esperando à mesa. Sem expressão alguma, Sara sentou-se, agarrou a faca e correu de súbito para o quadro de energia que estava fechado firmemente.
-Sara, o que está fazendo? – A voz inalterada de David protestava. – Sara, não faça isso. Sara, por favor...
Usando a faca como alavanca, Sara forçou a tampa e apunhalou os fios repetidamente, e uma a uma as luzes da casa se apagaram.
-Sara... Por favor... O dano que está fazendo é irreparável...
A voz perfeita de David agora enfraquecia a medida que Sara esfaqueava com fúria o plástico inerte.
-Sara... Eu te...
Com uma pequena explosão, David se calou e Sara foi arremessada para trás pelo choque. Com um clique discreto, a porta se abriu, e ela olhou para a rua iluminada pelas luzes artificiais dos postes. Se levantando lentamente, Sara caminhou para fora do apartamento.
Ela se sentiu mais solitária do que jamais havia se sentido em toda a sua vida.