segunda-feira, 3 de junho de 2013

Coragem



For of all sad words of tongue and pen, the saddest are these: it might have been!

John Greenleaf Whittier

Sentou-se à janela. Lá fora, o mundo. Mal podia esperar. Em minutos, o ônibus se moveria. As serras que delineavam o horizonte e limitavam sua vida ficariam para trás. Os mesmos montes que o acompanharam e o aprisionaram por uma vida jamais seriam vistos novamente. Minutos. Menos agora. Mal podia esperar. Lutara tanto, sofrera tanto, por este momento. Por estes minutos. Estes segundos.

Enfim, movimento. O ônibus, com um rugido de uma criatura retirada de seu sono milenar, recua e com ele, os montes e serras. A criatura guincha, gorgoleja e para. Desespero absoluto do rapaz. Tirânicos, os montes se agigantam ao seu redor. Seria impossível escapar de seu jugo? A fera de metal, mais antiga que o tempo, recusa-se a se mover. Gritos lá fora. Mais um passageiro, atrasado (justo hoje...!), embarca no estômago da criatura. Mais um que anseia por se ver livre...

Mas não é um passageiro, e sim uma passageira. Ele pode vê-la, através do reflexo na janela. Uma gota solitária de suor escorre pela sua testa, o olhar fixo nos montes onipresentes, contudo sem olhar para eles. Parecem diminutos agora, ridículos. Como puderam um dia aprisioná-lo? Como pudera um dia se preocupar com assuntos tão fúteis, quando uma situação como esta agora surgia? A passageira se aproximava. O rapaz nunca vira nada tão lindo. Seu andar parecia saído de um sonho, mas seu rosto desaparecera. O reflexo sumira, pois a passageira se aproximara dele. Dele! Não é possível. É um sonho, um pesadelo, pois ele não apenas encontra-se livre, não apenas assiste aos montes desaparecerem no horizonte antes dominado por eles, como também está sentado ao lado de um anjo! Pois ela sentou-se ao seu lado.

Por quê? Certamente não havia outro lugar. Era sentar-se ali ou ficar de pé. Seria essa a razão? Ele não ousava olhar. Temia que, com um movimento brusco, tudo se desfizesse diante dos seus olhos e ele se encontrasse preso novamente no vale, cercado pelas serras. Temia um encontro de olhos. Não ousava se mover. O ronco do motor era inaudível, a paisagem voando à sua frente, imperceptível. Nada mais importava.

Um solavanco. O rapaz é atirado de seu devaneio, e ao tentar se ajustar novamente na cadeira, sua perna encosta na dela. Ele congela. Não ousava olhar, não podia olhar! Uma tortura incomensurável. A perna não recuou. Está ali, encostada na dele. Saberia ela...? Teria percebido, permanecera indiferente...? Um olhar responderia tudo, mas era arriscado demais. E se seus olhos se encontrassem? O que diria? Conseguiria dizer qualquer coisa? Não. Mera coincidência. Ela, sentada ali, indiferente, mal havia percebido a perna ali. E, no entanto, ela se move! Está consciente, então! Não é um sonho, é a realidade, e suas preocupações de outrora parecem distantes, ecos de outra vida. Houvera outra vida? Houvera qualquer coisa, além disso? Além daquele instante, ali, de pura ansiedade, em que tudo o que existia eram as pernas, que se tocavam?

Algo havia de ser feito. Uma decisão tomada, certamente, imediatamente! Coragem! Um olhar, um correr de olhos pelo ônibus... Evite os olhos dela... Mas é preciso saber. Não há mais desculpas. Levante os olhos, homem!

O rapaz percorre a fria máquina com os olhos. Há lugares vazios no ônibus. Quietude. Nada acontece, todos sentados, compenetrados na viagem, não percebem a angústia que se desdobra ao seu lado. Enfim, seus olhos pousam nela. Por frações de segundo, ele se deleita. Linda. Nunca houve nada mais perfeito. E seu olhar, tão sereno! Fita o chão imundo, indigno de olhos tão belos... Percebe o movimento do rapaz, e levanta a cabeça. Ele, rápido, retorna a fitar a paisagem, nula e vazia. Seu coração explode, sua alma grita em desespero. Teria ela percebido? Quanto tempo a encarara? Frações de segundos, julgava ele... Mas e se houvesse se demorado demais? Olhar fora um erro. Sua angústia só crescera. Mas, se havia lugares vazios...! Ela escolhera sentar-se ali? Por quê? Não era o mais cômodo, nem o mais prático...

Mais um solavanco, este, amaldiçoado. Por um reflexo, as pernas se afastam. O único elo concreto da existência daqueles momentos desaparece. Agora só existem as memórias, as memórias e a paisagem, que se move, monótona e sem fim. O rapaz está imóvel. O que significa isso? Não se amam mais? Novamente, é necessário agir. Reunir coragem, aproximar-se, olhar novamente, e talvez, talvez... Conversar? Mas sobre o que conversariam? Por acaso o inseto tem algo a dizer à Vênus? Mas não havia outra maneira... Era necessário arriscar tudo nesse derradeiro ato, ou tudo aquilo tornar-se-ia apenas uma lembrança, perdida como lágrimas na chuva, ofuscada pela ação erosiva do dia-a-dia nos sentimentos humanos. Não, isso era impensável, inadmissível! Mesmo que acabasse em desastre, haveria de haver algo que marcasse aqueles momentos. Uma tentativa, ao menos... Qualquer coisa, mas não um ‘poderia ter sido’...

Lentamente, como quem marcha relutante para a batalha, o rapaz levanta o olhar, apenas para encontrar...

Encontrá-la. Ali, real, concreta, olhando para ele. Pois ela também reunia sua coragem. Ela também, estava prestes a dizer algo, quando percebeu que ele fazia a mesma coisa. Ambos os planos, cuidadosos, planejados, infalíveis, caíram por terra, inúteis agora, desnecessários. Olharam-se. Frações de segundos ou uma eternidade, não importava. O efeito fora o mesmo. Entendiam-se, conheciam-se profundamente, e compreenderam-se a tal ponto que palavras pareciam ora redundantes, ora insuficientes.

A criatura de metal gritou, esperneou e morreu, concluindo sua viagem derradeira. Com um suspiro ensurdecedor, as portas se abriram. O mundo esperava ansiosamente para acolher aqueles refugiados de si mesmos. Ele e ela desceram do ônibus, juntos. Palavras não eram necessárias.

2 comentários:

  1. Só uma coisa tenho a perguntar: este texto é seu?
    Porque, se for, mereceria estar publicado em outros lugares, à vista de outros olhares de uma multidão de gentes. Que peça! Você descreveu, com detalhes, toda a subjetividade da situação, traduzindo em palavras toda a emoção que acomete um coração que acaba de ser subitamente acometido de uma nova emoção, antes desconhecida para ele. Senti-me como se fosse eu o próprio passageiro o qual, como todo recém-apaixonado, faz das coisas pequenas um imenso teatro shakespeariano, onde um mero encostar de pernas parece ser o encontro de dois astros que, no acaso típico da infinitude do cosmos, esbarram-se por mera obra do destino.

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  2. Muito obrigado! Sim, o texto é de minha autoria. Que bom que você entendeu e viveu a angústia do rapaz junto com ele... Eu uso esse blog justamente para esse fim: compartilhar algumas coisas que escrevo, que acho merecedoras da atenção de outras pessoas. Obrigado pela sua!

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